segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Poder e Liberdade em Shakespeare, ou a doutrina do morde e assopra

A noção de liberdade constrói-se em referência a um poder. Só há sentido em tratá-la, se há algo que possa constrangê-la. Dessa maneira, cabe ao príncipe a serenidade e a justiça necessárias à dosagem da virtude e da fortuna como elementos de um bom Governo.


Nesse contexto, será próspero o príncipe agraciado pela fortuna com a arte de tomar medidas extremas e, em certa medida tempestuosas, logo no início de seu governo. Assim, no início da dominação, após a conquista, convém que se reúnam os súditos e se lhes exponha os verdadeiros parâmetros de sua liberdade: “Vem. Acorrentarei teu pescoço aos pés. Beberás água do mar e, por alimento, terás mexilhões de água doce, raízes secas e cascas de frutos. Vem comigo” (SHAKESPEARE, 1991:95)[1].


Essa primeira impressão remete aos governados à fantástica realidade do governo. Apaziguada a comoção da investida no poder do novo príncipe e orientado o plano virtuoso do Status, cabe ao soberano afrouxar a mandíbula e arrefecer a mordedura. Reunidos novamente, ouvem os súditos a oferta da benevolência, condicionada a deveres:

Se te tratei com rigor excessivo, agoura encontras tua recompensa. [...] Então recebe minha filha, não apenas como oferta minha, mas como tua merecida conquista. Se, no entanto, desatares os laços de sua pureza antes de celebradas as cerimônias sagradas, o céu não haverá de derramar seu doce orvalho sobre esta aliança. E o ódio estéril, o desprezo e a discórdia hão de cobrir de espinhos vosso leito de núpcias. Assim, acabareis por detestá-lo” (SHAKEASPERE, 1991:119).


Dessa forma, em face dos direitos e deveres expressos, sela-se o contrato que permite a manutenção da ordem social e a garantia de sua segurança. Os governados, livres nesse contrato, o mantém sobre os dizeres:


Como espero dias serenos, filhos e vida longa para meu amor, nem mesmo o antro mais escuro, o lugar mais oportuno ou mais forte tentação será capaz de incendiar o meu desejo, para impedir essa celebração. Nesse dia, será como se o sol permanecesse eternamente no horizonte, e a noite acorrentada ao firmamento. (SHAKESPEARE, 1991:119/121).


Selado o compromisso do Status, o soberano, por seu ministério, confere aos súditos a devida proteção e o gozo da prosperidade, ordenando a seu leão alado: “Necessito de outra artimanha semelhante. Vai chamar os espíritos que mantenho às tuas ordens. Traze-os para cá. Pois quero oferecer a estes jovens uma demonstração de minha arte. Fiz esta promessa. Eles estão esperando” (SHAKESPEARE,1991:121).


A manutenção desse virtuoso governo, uma vez fundada na fortuna, dependerá, contudo, da justiça principesca. Disporá de um longo governo aquele que assopre o julgamento:


Embora tenham-me ferido com seus crimes, ainda assim farei prevalecer minha razão, e não a minha fúria. O perdão vale mais do que a vingança. Se arrependeram, não há por que insistir na punição. Vai soltá-los, Ariel. Vou quebrar o encantamento e devolver-lhes a razão. (SHAKESPEARE, 1991:139).


O desiderato racional redundará na prosperidade do governo. No entanto, a manutenção ordem aos governados dependura-se na linha tênue entre a força da mordida e a sutileza do assopro. Dessa forma, na menor variação do pêndulo da virtude e da concessão da liberdade: “Chegará o dia em que as torres coroadas de nuvens, os palácios resplandecentes, os templos solenes e mesmo o globo imenso, e tudo quanto lhe pertence, vão desaparecer sem deixar rastros, como se dissolveu esse espetáculo” (SHAKESPEARE,1991:129).


Ao soberano, de fato, cabe a arte da temperança. Da tempestade à bonança: a justiça selará o valor da liberdade. O contrato social resplandecerá seu poder na medida em que o súdito consinta à afirmação: “Serás tão livre quanto os ventos das montanhas. Mas deves seguir rigorosamente as minhas ordens” (SHAKESPEARE,1991:57).

São Paulo, 27 de setembro de 2009


[1] SHAKESPEARE, W. A Tempestade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.

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